O que a psicologia e a medicina veterinária têm a dizer da zoofilia? Uma análise sobre a parafilia e suas consequências

ANIMAIS AME-OS E OS DEIXE VIVER: SEMPRE PELOS ANIMAIS. SEMPRE PELA ...
Texto como ato de repúdio

Tânia Neves (Psicóloga Clínica)

Larissa Costa (Médica Veterinária)

Izabella Rocha (Graduanda do curso de Medicina Veterinária)

Luiza Nogueira (Graduanda do curso de Medicina Veterinária)

O texto busca trazer um diálogo para o leitor sobre uma das parafilias que tem sido discutida atualmente, com o olhar da psicologia e da medicina veterinária. Considerando que houve uma grande repercussão envolvendo o Ministério Público do Rio de Janeiro – RJ, em fevereiro do presente ano, “o qual encaminhou para a Polícia um pedido de instauração de inquérito policial ‘com a máxima urgência’ por conta de uma abordagem ao tema da zoofilia feita por participantes do BBB 20.” (Jornal Estadão, 2020, 04 de fevereiro). Foi realizado análise do vídeo comentado, que nos chama a atenção a fala de uma participante: “Tudo bem se a pessoa quer ‘comer’ o animal” (sic).  Todavia, há diversos pontos que intrigam a ciência nesta afirmação, por sua vez nos movimentou para construir um esclarecimento maior, no sentido de explicar a partir do olhar da psicologia e da medicina veterinária sobre alguns entraves da afirmação expostas.

A psicologia compreende as parafilias como transtornos psicológicos, o qual o sujeito busca através de fantasias ou comportamentos frequentes de grande intensidade sexual uma satisfação por intermédio de estimulantes e/ou ações que pode envolver objetos inanimados; pessoas mortas (necrofilia); crianças e/ou adolescentes(pedofilia); adultos sem consentimento (estupros); sofrimento ou humilhação de si, ou do parceiro (sadomasoquismo); animais (zoofilia) etc. (DSM V,  Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 2014).

Lançando um olhar histórico sobre a sexualidade humana, acredita-se que as práticas de sexo com animais eram toleradas no período pré-histórico, mas com o processo evolutivo o qual se configura o homem em sociedade, foi considerado bestialidade. Compreende-se que o viés civilizatório buscou construir vínculos afetivos (famílias) influenciando nas relações com os pares; nas práticas sexuais criando tabus; ampliando responsabilidade ao coletivo social; normatizando algumas condutas etc. (CABRAL, 1995).

Hoje a compreensão de bestialidade tem um novo nome: zoofilia, bem como múltiplas manifestações da mesma, o qual passou ser “um show” na indústria “pornô” ou perpetua em prática “as escondidas”. Todavia, ainda há grande prejuízos, principalmente, na saúde dos animais. Cabe colocar em pauta o projeto de lei N.º 9.070, DE 2017, como justificativa para criminalizar o ato:

A Lei de crimes ambientais dispõe em seu art. 32 que praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos tem a pena de detenção, de três a um ano e multa. No entanto, a lei não especifica a zoofilia ou bestialidade, apenas se refere que quem, praticar abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais. Em outros países como Portugal, Inglaterra, Alemanha, Noruega, Suécia é proibido à prática da Zoofilia, onde os atos sexuais com animais são ilegais. (Câmera dos Deputados, 2017, lei 9.070)

A psicologia analítica Freudiana na obra os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, publicado no ano 1905,  relata no primeiro capítulo sobre os processos psicológicos das chamadas aberrações sexuais. Descreve diversos desvios “existentes quanto ao objeto sexual e quanto à finalidade sexual.” Por sua vez, criou os termos: objeto sexual (pessoa de quem procede a atração sexual) “e alvo sexual (ato a que a pulsão conduz) fazendo a alusão que frequentemente ocorrem desvios em relação tanto ao objeto quanto ao objetivo sexual” (FREUD, 1905, p. 151). Neste contexto segue alguns diálogos para melhor elucidação:

“[…] a sexualidade humana como sendo, no fundo, perversa, na medida em que nunca se desliga inteiramente de suas origens, que a fazem procurar sua satisfação não numa atividade especifica, mas no ganho de prazer ligado a funções ou atividades que dependem de outras pulsões.” Em Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis (1992, p. 342)

Ou seja, as pessoas são responsáveis em administrar suas pulsões (desejo de satisfação sexual) mais primitivas (visando a evolução no qual o homem deixa de ser animal para ser um ser social), minimizando atitudes perversas, uma vez que o processo de sexualização inadequado propicia o desenvolvimento das parafilias, caso o sujeito renegue as leis normativas sociais, sobretudo, a partir das escolhas em satisfazer “egoisticamente” apresentando um estado de regressão do desenvolvimento psicológico e social. Acredita-se que “o perverso” buscará justificar seus atos ilícitos em busca de não se responsabilizar ou ter limites de seus maus hábitos e ações. Na linha analítica, portanto, o perverso escolhe ser doente, vive em busca “do princípio do prazer” e não escolhe viver segundo “o princípio da realidade” (FREUD, 1905).

Sobre o olhar da psicologia sistêmica, compreende-se que o sistema familiar e social do sujeito parafílico é adoecido, visto que a manifestação da doença é um sintoma que atua como mecanismo de reprodução de inúmeros atos libidinosos desajustados em toda a rede familiar de gerações passadas, presente e futuro, criando conexões no campo do inconsciente e do consciente dos sujeitos, perpetuando ou até naturalizando a perversão. Necessitando, por sua vez, de intervenções mais intensas na proposição de solucionar o problema (MADSEN, 2010 & NICHOLS, 2007).

Analisando alguns aspectos da psicologia pelo viés da psicossociologia, visando compreender o “macrossistema e o microssistema” o qual o sujeito parafílico esteja inserido. O macrossitema são consideradas as massas – o grande grupo social: cidade, estado, país etc. -, e suas manifestações sobre como se comporta perante a sexualidade existente na humanidade. O microssistema é compreendido como a família, trabalho, escola etc. (BRONFENBRENNER, 1989; 1996 & KREBS, 1995), e as construção em saúde nas relações afetivas sexuais, na busca da compreensão como é realizado os processos de educação sexual, se há diálogos, se permite ter boas informações a respeito do tema etc. Levanta-se hipóteses que as parafilias sejam existentes, por falta de orientação das pessoas sobre a sexualidade adequada, somada aos fatores limitantes como os tabus exagerados e a falta da “punição” mais assertiva para os transgressores – parafílicos.

No âmbito da medicina veterinária, os profissionais são responsáveis por avaliar as condições de vida do animal, com o objetivo de preservar o seu bem-estar. Sendo assim, é de extrema importância que o médico veterinário adquira conhecimentos sobre a zoofilia para conseguir identificar essas práticas. Alguns países, já reconhecem os animais como seres vivos dotados de sensibilidade. A necessidade de normas específicas de proteção dos domésticos ditos de companhia emerge principalmente da natureza do vínculo entre eles e os seres humanos (MOREIRA, 2017). Muitos animais são considerados membros da família, tornando imprescindível a criação de normas para a proteção desses seres.

Em razão da vulnerabilidade de um animal de companhia, derivada da dependência de cuidado do seu detentor, e também da sua incapacidade de expressão verbal, os maus-tratos sobre animais, especialmente os de companhia, são tipificados, com as devidas adaptações, seguindo a classificação utilizada para crianças (Vermeulen & Odendaal, 1993; Munro, 1999; Munro & Thrusfield, 2001d, apud, Moreira, 2017).

Atualmente, a Resolução nº 1236, de 26 de outubro de 2018 do CFMV (Conselho Federal de Medicina Veterinária) define que abuso e maus tratos é qualquer ato intencional, comissivo ou omissivo, que implique no uso despropositado, indevido, excessivo, demasiado, incorreto de animais, causando prejuízos de ordem física e/ou psicológica, incluindo os atos caracterizados como abuso sexual.

As “Cinco Liberdades” definem de forma simples os fatores essenciais para garantir o bem-estar animal. Segundo Guimarães et al. (2018), dentre os aspectos que caracterizam as cinco liberdades podemos citar a liberdade fisiológica (livre de fome e sede), liberdade ambiental (livre de desconforto), liberdade sanitária (livre de dor, ferimentos e doenças), liberdade comportamental (livre para expressar seu comportamento normal) e liberdade psicológica (livre de medo e angústia). A zoofilia desrespeita vários pontos das “Cinco Liberdades”, colocando em risco o bem-estar animal.

Do ponto de vista animal, a zoofilia pode ser considerada abuso sexual. Isso não só pela violência física que pode ocorrer nesses casos, mas também por possivelmente afetar o psicológico desses animais. Ainda não há estudos que mostram as cicatrizes neurológicas desses atos, mas imagina-se que o aumento do medo, da ansiedade e do estresse estejam presentes, principalmente em casos que o ser humano aflige dor ao animal. Os principais ferimentos derivados de práticas zoofilicas são lesões penetrativas na região vaginal e retal e trauma genital e perianal, podendo também não existirem lesões aparentes (MUNRO, THRUSFIELD, 2005). 

Mesmo em casos sem aparente violência ou em que os animais parecem “participativos” ou dissociados do ato, a zoofilia ainda é considerada abusiva pois não há implicação de consentimento. Isso porque os animais domésticos e de fazenda dependem do ser humano para comer, ter abrigo e afeto, podendo sujeitá-los à suas vontades, incluindo as sexuais. Além disso, os homens possuem um poder desbalanceado e uma capacidade intelectual superior na escala evolutiva, sempre havendo a possibilidade de coerção. Nesse sentido, é impossível obter consentimento genuíno de um animal (BEIRNE, 2000).

Os atos sexuais entre humanos e animais são considerados opressivos, muitas vezes provocam dor e até mesmo a morte e os animais são incapazes de “consentir” ou comunicar o evento (Lockwood, 2006; Phillips & Lockwood, 2013, apud, Moreira, 2017). Dessa forma, o termo abuso sexual de animais é considerado mais correto quando o tema é abordado sob a perspectiva da vítima. No estudo de Munro & Thrusfield (2001a), dos 448 casos de maus-tratos físicos analisados, 6% referiam-se a abuso sexual, e o espectro das lesões espelhava o encontrado em casos de abuso sexual em humanos.

Por mais que, o abuso sexual pode não provocar lesões significativas, a prática ainda sim deve ser considerada um crime. A zoofilia perturba a dignidade do animal, uma vez que isso não expressa um comportamento normal (Bolliger & Goetschel, 2005, apud, Moreira, 2017), inviabilizando mais uma das “Cinco Liberdades” que estes deveriam possui. Quando o animal sofre fisicamente e é forçado ou induzido a expressar comportamentos que não dizem respeito a sua natureza, sucede-se uma situação de estresse causando medo e angústia.

Portanto, a zoofilia coloca em risco o bem-estar animal por impedir que o animal desfrute de três das cinco liberdades (livre de dor, livre para expressar seu comportamento natural e livre de medo e angústia). Além disso, devido ao fato de os animais não serem capazes de expressar, a zoofilia se torna um ato não consentido, devendo ser considerada um abuso sexual e os praticantes devem ser criminalizados por isso.

REFERÊNCIAS

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION (2014). DSM-V: Manual de Diagnóstico e Estatística de transtorno Mentais (5ª Ed.). Lisboa: Climepsi Editores.

BEIRNE, P. 2000. Rethinking bestiality: Towards a concept of interspecies sexual assault. In Companion Animals and Us: Exploring the Relationships between People and Pets, 313–331, ed. A. L. Podberscek, E. S. Paul and J. A. Serpell. Cambridge: Cambridge University Press.

BRONFENBRENNER, U. (1996). A Ecologia do Desenvolvimento Humano: Experimentos Naturais e Planejados. Porto Alegre, Artes Médicas.         

BRONFENBRENNER, U. (1989). Ecological system theory. Annals of Child Development6, 187-249.         

CABRAL, Juçara Teresinha. A sexualidade no mundo ocidental. São Paulo: Papirus, 1995.

CÂMERA DOS DEPUTADOS. PROJETO DE LEI N.º 9.070, DE 2017 (Do Sr. Vitor Valim). Fonte: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1624633. Acesso:12, jun. 2020

BRASIL. Constituição (2018). Lei nº 1236, de 26 de outubro de 2018. Resolução Nº 1236, de 26 de Outubro de 2018.

ESTADÃO. Fonte: https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,bbb-20-mp-rj-pedira-inquerito-apos-conversa-sobre-zoofilia,70003185388. Acesso: 12, jun, 2020.

FREUD, S. (1905). Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard, 1987. Nota 3 acrescentada ao terceiro ensaio em 1920, p. 169-70.

KREBS, R. J. (1995). Urie Bronfenbrenner e a Ecologia do Desenvolvimento Humano. Santa Maria, Casa Editorial. 

MADSEN, Wilian C. Terapia colaborativa com famílias multiestressadas. São Paulo: Roca, 2010.

NICHOLS, Michel P. Terapia familiar: conceito e métodos. 7. ed. Porto Alegre; Artmed, 2007.

GUIMARÃES, L. G.; FERRO, D. A. C.; FERRO, R. A. C.; SANTOS, K. J. G.; SILVA, B. H. L.; FERREIRA. J. M.; ROSA, G. G.; SILVA, M. P.. Avaliação das cinco liberdades do bem-estar animal em propriedades de Turvânia/GO. Centro de convenções da PUC-GO. Agosto, 2018.

MOREIRA, A. S. S. S. Crimes Contra Animais de Companhia: Percepçãp, Tipificação e Relação com Outros Ilícitos Penais em Medicina Veterinária Forense. Universidade de Lisboa, Faculdade de Medicina, 2017

MUNRO, H. M. C. and THRUSFIELD, M. V. 2001. “Battered pets”: sexual abuse. Journal of Small Animal Practice 42: 333–337.

Publicado por taniapsicologia

Meu nome é Tânia Iara da Costa Neves sou formada em: 1) Psicologia, 2) Gestão de Recursos Humanos e 3) Teologia. Tenho especialidades em: a) Diagnóstico clínico e avaliação psicológica; b) Psicologia do aconselhamento familiar e escolar, com ênfase em neurociência e aprendizagem e c) Psicologia do esporte. Meu campo de atuação é na psicologia clínica com enfoque sistêmico.

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